terça-feira, 29 de julho de 2008

Magnifique

Ela entrou deslumbrante.
Des-lum-bran-te.

Era evidente que Ela estava bem e eu não.
‘Nossa, você emagreceu’, foi o que eu disse quando Ela me deu um ‘alô’. Um ‘alô’, não um ‘olá’; um ‘alô’ que é o vocábulo equivalente a sorrir e acenar a cabeça de longe a um conhecido reconhecido.
Foi o melhor que pude dizer a alguém que era toda a minha vida: respirar, Ela, pensar Ela, comer, Ela, beber (muito), Ela, minha obsessão e tema: Ela. Eu estava triste e miserável e, de novo, visão de redenção e danação, Ela.
Ela tinha me largado há quinze minutos, duas horas, sete dias e oito meses, mais ou menos. Um motivo tolo demais pra mascarar que Ela não me queria mais porque eu era cansativo ou porque simplesmente encontrara alguém que fodia melhor.
Não quero parecer grosseiro, o discurso de um perdedor: ela era uma grande filha da puta. Não foi. Ou foi e eu também fui em alguma medida, nada realmente ofensivo.
Ofensivo foi Ela, emagrecida&bela, entrando naquela maldita festa enquanto eu resmungava Ela pra um amigo entediado. ‘Que fazer?’, dizia ele, ‘deixa estar’. E eu, ‘Nossa, você emagreceu’. E Ela, nada. Seguiu adiante.
Nenhuma só palavra: se estava com alguém ou se sentia muito ou sentia ciúmes, ou que me detestava, ou, ou, ou. Nada. Só um ‘alô’.
Que fazer?, eu penso, Deixar estar.
Mas não posso.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Perfeitamente Hermético

Eu não consigo ficar só. Ou: não sei ficar só.
A ironia: não sei me tampouco estar acompanhado.
É bem simples, diz o didático professor, trata-se, basicamente, de traçar o seu papel e seguir a etiqueta. Ser um bom ouvinte, ser espirituoso, demontrar-se envolvido, etc, etc.
Ainda que tenha isso tudo, é como nada. Como se: houvesse um quebra-cabeça com a última peça grande demais pra encaixar. Ou: está tudo certo menos o... detalhe.
O desconfortável detalhe, lembra? O detalhe: um pingo fora do i; eu fora daqui. Um teatro de marionetes? Um ventríloco! Precisamente isso, um ventríloco de todo mundo que não diz qual a sua fala, ou não diz qual é a graça.
E sem saber se doce ou amargo, você (eu) pensa como seria bom se se estivesse sozinho pensando como seria bom estar acompanhado pensando outra coisa.

domingo, 20 de julho de 2008

Navalha!

Maria foi pra não voltar mais.
Lembro bem daquele dia, terça-feira sem nuvens, Maria chegando deslumbrante. É a primeira coisa de que posso lembrar: havia Maria e antes... nada. A primeira que posso lembrar e a que lembro quando me dói a saudade: “terça-feira sem nuvens, Maria chegando deslumbrante”. Dito assim parece sonho. E talvez fosse. E de repente eu acordo num suor frio:
Maria foi pra não voltar mais.
Maria já foi outras vezes antes. Um ritual próprio nosso. Briga feia, nossa; choro, dela; partida, dela; choro, meu; volta, dela; volta, nossa. E esse disco tinha tocado vezes demais pra não se saber a letra. Mas:
Maria foi pra não voltar mais.
Maria era assim, meio boba meio mulher, meio menina, mulherão. Meio. E eu era pouco mais que quase sem ela e agora sou quase um quase, porque:
Maria foi pra não voltar mais.
E dá um frio na barriga, um nó no coração. Uma dó que não é de mim, é dela, ou do não-ela, do anti-ela, anti-Maria, essa ausência onipresente. Muito daquilo, o eu, era dela: andar, olhar, sorrir, pensar, tudo dela, dela. E nessa solitude esmagadora mexer os dedos e respirar fundo, tudo que não soluço e choro me parece estranho: uma outra pessoa mexendo seus dedos de outra pessoa. Estranho até outra pessoa, porque só Maria existe e ainda assim:
Maria foi pra não voltar mais.
O tempo é estranho; há muitos tempos. Os segundos, os dias, os daqui a pouco e os nunca mais. Os nunca mais são duros, depois não há. Tem a lembrança que é irmã-amante da falta, tem a lembrança e o desespero:
Maria foi pra não voltar mais.

E é só.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Festim

Ele não deveria ser como era. Ou eu achava que não deveria se parecer assim. Mas o que eu sei sobre carrascos, afinal? Só sei que esperava algo grotesco, menos homem, mais carrasco, como se o corpo marcasse o ofício. Esperava qualquer coisa, menos um homem que eu poderia conversar, que poderia ter pais e filhos, que simplesmente não fosse como era.

E devo ter parecido quase decepcionado, porque disse, ‘A justiça toma muitas formas.’
‘A justiça?’, eu perguntei e ele não disse mais nada. Serviu-me o café, ‘Açúcar?’
‘Injustiçado?’, não disse nada. ‘Injustiçado?’, ele repetiu.
Sorri, ‘A injustiça toma muitas formas.’
Ele não sorriu, ‘O Povo quer Justiça.’
Engraçado pensar no povo, essa besta indefinível, incompreensível. O povo quer justiça, o povo quer comida, o povo quer. Essa criança mimada, o povo. ‘Sou um mártir?’, disse rindo, ‘um mártir morre agradando o Povo, para o Povo.’
‘Não diga tolices!’
Não falei mais. E ele, ‘Clemência? Não vai pedir clemência?’
‘Não diga tolices’, foi minha vez de dizer, ‘O que o povo conhece do que é perdão? O que o povo conhece de culpa, arrepender-se? O povo é um peixe.’
‘O cárcere atrofiou-lhe a alma, os olhos. Acaba-se a Liberdade e logo se perde o senso’
‘Pelo contrário, na falta do que pensar aguçam os sensos filosóficos e morais. Ousa dizer o que é liberdade? É ver o sol nascer inteiro? É estar fora daqui? Qual é o espaço mínimo para se ser livre? Um quarto, uma casa, uma cidade? Porque está sempre nalgum lugar o homem, em algum lugar de onde nunca sairá! Liberdade de fazer o que se quer?!? Tolice, que desde cedo te calcam o que é bom e mau costume. E vais dizer que é o certo a ser feito pra que não matem um ao outro e eu lhe digo: o povo é cordeiro e há mil lobos.’
‘Só há um lobo’, ele disse, ‘e ele está nesta mesa’.
Não falamos mais nada. Comemos. Costume estranho comer antes da morte –não comemos todos? Nossas pernas e braços, comida... Comemos.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Uma fábula moderna de personagens esquisitos e sem uma clara lição de moral no fim IV

(Para a menina de fogo nas idéias)

“Houve sempre duas vidas distintas: aquela que eu tinha e a que eu gostaria de ter. Havia também os momentos em que as duas eram como uma: aqueles sonhos nos quais só às vezes eu podia voar, aquele pai noel ouvindo histórias de uma criança que era qualquer coisa menos eu e parecia acreditar –no que havia uma justiça cavalheira, que eu também acreditava nele e ele não.
Houve também momentos em que uma era de fato a outra, ou, ao menos, assim ainda me parecem. Momentos tais que, injustiça divina (?), passam; passando e fazendo crer que a vida tem muito de tragédia grega e de um humor pastelão da pior espécie.
Ela foi um desses momentos.

Ela me achava genuinamente interessante, como se eu tivesse sempre algo que dizer, e naquela época, talvez, tivesse, ou achava que tinha, ou.
Ela: era diferente, única -igual toda mulher. Moderninha e antiquada, era uma insensatez divertida: meio sacana, meio naif, como se parte envelhecesse e outra não.

Apaixonava dia sim, dia não. (Ela, não eu. Eu ainda me levava muito a sério.) E foi que um dia, acho, apaixonou por mim –anos ingratos, que eu cria Amor, como fim e não meio. Eu, sisudo nos meus chistes, pensava três vezes antes de não fazer nada. Eu, seguro pela inação, só entendi tudo quinze minutos tarde demais: eu fui dia sim e dia não, noutro dia eu já não era mais nada.
Precisamente naquele dia ela era tudo. No outro também e no outro e noutro. Eu, patético e apaixonado, trágico e atrasado. Foi um timing ruim, é sempre um timing ruim. Uma morte sem culpados, um genuíno acidente: eu doendo uma paixão, ela sensata demais pra me levar a sério.

E foi assim muito tempo até que não dói mais.”

Uma fábula moderna de personagens esquisitos e sem uma clara lição de moral no fim VII

(Pra uma argentina)

“‘Eu quero isso, palavras aqui e ali, tudo em ordem. Sexo também é bom, sem essa coisa de selvageria, sem pressa, quase sem vontade, quero um amor que não sofre, não chora, não arde: um amor assim... insensível?, não, um amor tangível: que é honesto assim: o que se diz, o que se faz: é o que é, um amor sem grandes-coisa, um amor porto-seguro, que tudo que resta é incerto demais, e claro que esse amor não existe, que é miragem, alucinação de sede e fome, daí ser você, assim impossível, indo embora cedo só porque tem mesmo de ir’, eu quis dizer e não disse.

E ela levantou e foi embora, ‘Porque estou atrasada’, foi o que ela falou um português ruim enquanto me beijava a testa e ia embora para sempre (?).”

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Café

Abro a geladeira e passo alguns segundos decidindo o que vou comer, o que não vou comer e o que já deveria ter sido jogado fora. A voz dela sugere: ‘Leite, pão, ovo e laranja’; eu olho pra trás e constato sua translúcida e flutuante figura.

‘Oi vó’
‘Oi filho’.

Pego pizza gelada mais a coca-cola e boto na mesa. Ela reclama e reclama e eu não faço nada. Ela repreende e fala tudo aquilo que:
Eu devia me cuidar, correr na rua, alface e chicória no almoço e pro diabo com toda aquela cerveja.

Ela puxa um cigarro, acende e traga.
Isso não vai me matar duas vezes. Nem da primeira foi isso, foram meus pulmões asmáticos, explica. Eu não tiro o olhar dela e ela sorri. Quer ver como é que funciona?, e não me deixa responder. Ela põe a mão debaixo do seio (firme) e levanta a pele e os ossos e eu vejo aquela bomba metálica e os dois balões de festa cheios de algum gás leve pra que ela flutue. A bomba metálica se mexe bum, bash e pára de novo.
Ela solta a fumaça pro alto e eu presto atenção na minha comida. Tomo minha coca e só a calabresa da pizza. Guardo o resto e ela continua falando.

Daí eu me limpo, pego minhas coisas e faço tudo o aquilo que não